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Viagem à Argentina: do tango às carnes

Fãs de futebol, continuemos a aproveitar o talento de Messi para nos deslumbrarmos outra vez. Um dos melhores de sempre continua a ser um dos melhores da atualidade.

Gonçalo Palma

A seleção das pampas parece ter pista livre para dançar o tango, num grupo ao seu alcance, o C, diante da Arábia Saudita, da Polónia e de uma das suas vítimas prediletas, o México. As maravilhas de Maradona no México '86 foram já com a televisão a cores, mas fazem há muito parte do arquivo. A fé que é desta que Messi leva a Argentina para o tri mantém-se.  

O eterno Messi
Lionel Messi parece ter dons de eterno, sem sinal de esmorecer como um dos melhores do mundo da atualidade. A bola cola-se aos pés do nº10 do Paris Saint-Germain, que sabe serpentear e rematar de longe, direitinho até ao fundo da baliza, com a maior das naturalidades, como quem bebe um café. No quadro de honra da parede, só lhe falta mesmo o título de campeão do mundo de nações. Tudo o resto já venceu: campeâo europeu e do mundo de clubes, campeão sul-americano pela seleção argentina e até medalha de ouro nos Jogos Olímpicos. Não que isso pareça ser muito importante para ele, mas já foi sete vez o Bola de Ouro, um recorde absoluto.
É verdade que os gigantes europeus têm dominado o mundo do futebol. Mas há que contar, dizem os livros, com o Brasil e a Argentina. Estes últimos são os atuais campeões sul-americanos e têm recursos individuais para sonharem com o terceiro título mundial apesar de não serem os favoritos. Na defesa, o lateral-direito Gonzalo Montiel (do Sevilha), o defesa central Lisandro Martínez (do Manchester United) e o lateral-esquerdo ex-sportinguista Acuña dão a coesão defensiva necessária. Num misto de raça e de criatividade, os extremos Dybala (da Roma), Ángel Correa (do Atlético Madrid) e Di María (do Juventus) têm a sua cartola de truques mágicos para baralharem os adversários. E como se não bastasse Messi, há que contar com avançados como Lautaro Martínez (do Inter de Milão) e a promessa Julián Álvarez (nos quadros de Manchester City) para a Argentina festejar muitas vezes golos. Não nos esqueçamos ainda de dois trunfos benfiquistas atuais que serão convocados, o experiente central Otamendi e o jovem médio com vista de falcão Enzo Fernández.

 

Maradona, o pé de Deus
Ficou mítica a explicação de Maradona para explicar o golo ilegal que tinha marcado com o braço contra Inglaterra no México ’86: "cabeça de Maradona, mão de Deus". Mais tarde, pediu desculpas pela maldade ao guarda-redes Peter Shilton. Mas nem precisava. Mal passavam três minutos depois da pequena batota, Maradona resolveu compensar os fãs de futebol com um dos melhores lances da história dos Mundiais: uma corrida em drible que deixa sete jogadores ingleses para trás e que termina com a bola nas redes. Esqueçam a mão de Deus. Aquele pé esquerdo é que era divino: permitiu golos de longe que pareciam impossíveis, fintas endiabradas e assistências que faziam de qualquer ponta-de-lança mediano um goleador. Durantes anos seguidos, entre finais dos anos 70 e inícios dos anos 90, o seu génio desfez táticas dos técnicos adversários e inutilizou marcações cerradas, para alegria dos adeptos do Boca Juniors e do Barcelona, e sobretudo do Nápoles que deve a Maradona os seus primeiros dois títulos de campeão italiano e a única competição europeia que alguma vez ganhou (uma Taça Uefa em 1989). Mas o grande apogeu foi o México '86, onde a Argentina se sagrou bicampeã mundial, com Maradona a carregar uma equipa razoável às costas. Nem Pelé brilhou tanto no Suécia '58 como Maradona em 1986.

Mas a Argentina já era um viveiro de grande futebolistas. No período AM (Antes de Maradona), Di Stefano (mais tarde, naturalizado espanhol) e o veloz Kempes tinham pés sobredotados. No período DM (Depois de Maradona), Batistuta e Hernán Crespo foram muito gulosos com as redes das balizas. O historial da seleção argentina é, aliás, de peso: 15 Copas América (mais seis que o rival Brasil), dois títulos olímpicos seguidos (em 2004 e 2008) e uma Taça das Confederações.

Lá dentro, o país fumega de tanta paixão por futebol. Buenos Aires tem um dos maiores dérbis do mundo: o duelo eterno entre o River Plate e o Boca Juniors. Ambos os clubes enriqueceram os seus museus com os maiores troféus internacionais, com várias Taças dos Libertadores e Taças Intercontinentais. Em boa verdade, a Argentina é o país que mais Taças dos Libertadores (25) e Taças Intercontinentais (9) ganhou. O maior papão sul-americano é mesmo o clube argentino Independiente, com sete Taças dos Libertadores no palmarés.

Por falar em recordes, é de um argentino o maior registo de golos num só campeonato português: falamos de Yazalde que, ao serviço do Sporting, selou 46 tentos na edição de 1973-74, e deu à equipa leonina o seu 14º título de campeão. 26 anos e três títulos depois, a garra de Duscher e o pé quente de Acosta musicaram de tango a festa leonina de campeões de 2000. O FC Porto também se deu bem com os argentinos, como "El Comandante" Lucho González que via sempre bem ao longe o seu compatriota Lisandro López, um avançado tão batalhador como brilhante. Para arrebitar o Benfica em 2009-10, Jorge Jesus pôde contar com trunfos argentinos como o coelho atómico Saviola, e o ultraveloz Di Maria, teleguiados pela classe de Aimar. Mais tarde, os caminhos do inédito tetracampeonato benfiquista iniciaram-se com mais artistas argentinos, os maiores deles os extremos Gaitán e Salvio, com um ótimo polícia uns metros atrás, o central de boa memória Garay.


 
O perfume do tango
Se Buenos Aires é uma das capitais do tango (há que ter sempre em conta Montevideu, no Uruguai), o cantor Carlos Gardel é ainda o seu rei, passados mais de 80 anos sobre a morte num acidente de avião. A sedutora dança aos pares tinha como um dos principais instrumentos o bandoneón, um tipo particular de concertina muito usado nos ensembles de tango. Um dos principais criativos dessa visão mais orquestral do tango, ou no caso no novo tango, foi Ástor Piazzola, sem dúvida um dos maiores músicos argentinos do século passado. Um dos grandes bandeonistas de tango foi Aníbal Troilo, também bem habituado aos ensembles e com um toque mais humorado.

Não admira que o país do tango seja o berço de grande compositores de bandas sonoras de filmes. Luis Bacalov embelezou com a sua música cenas tensas de filmes de Spaghetti Western tão bem que as suas composições caíram no goto de Quentin Tarantino que as usou em vários dos seus filmes. Mas foi a banda sonora para o filme "O Carteiro de Pablo Neruda" (de 1996) que lhe deu o único Óscar de Melhor Partitura. O saxofonista de jazz Gato Barbieri ficou célebre pela banda sonora para o clássico erótico "O Último Tango em Paris", que entrelaçou Marlon Brando e Maria Schneider como se fosse um par de tango na cama - e de facto havia pianinhos de tango naquele jazz vanguardista.

Nem no folclore argentino puro e e duro, o acordeão está ausente. Raúl Barboza tratou bem disso. A folk argentina tem uma grande tradição de intervenção política. Mercedes Sosa, a Voz da América, não teve medo de enfrentar o poder militar opressor na Argentina e resistiu cantando até quando pôde. A sua maior referência foi Atahualpa Yupanqui, talvez o maior trovador folk do país.

A antiga primeira-dama argentina e proclamada líder espiritual da nação, Eva Perón, inspiraria uma das canções mais célebres do século XX, "Don't Cry for Me Argentina" (de 1978), para o musical "Evita" (mais tarde, um filme interpretado por Madonna em 1996).

 

Um país de carnívoros
Quem for carnívoro, tem razões para ser muito feliz na Argentina. A nação é conhecida pela qualidade da sua carne, suculenta e tenra. Além dos muitos assados e dos refogados, a grande fama é a da parrilla clásica, os longos grelhados em brasa de todo o tipo de carnes: bovina, de cordeiro, leitão. Muitos ortodoxos defendem que as carnes devem ser cozinhadas sem molhos. Mas é difícil resistir ao chimichurri, uma mistura de alho amassado com salsa picada, oregãos, pimenta e, muito importante, malagueta em pó, a que se acrescenta vinagre e azeite.

A carne picada também serve, sobretudo nas populares empanadas (o que chamariamos de pastéis), de grande diversidade em toda a Argentina. Mas este não é só um país de muitas steakouses, também abundam as pizzarias, o que não surpreende atendendo às grandes correntes de imigração italiana.

A nível de doces, o mais famoso é de longe o doce de leite, ou dulce de leche, normalmente um produto enlatado, mas que pode ser facilmente cozinhado com leite, açúcar e baunilha - e até se pode acrescentar chocolate ralado e ter outros usos.

Não é de admirar que o quinto maior produtor vinícola mundial apareça frequentemente com alguns dos seus vinhos nas listas dos melhores, todos eles no norte ocidental, junto à fronteira com o Chile. As regiões de Mendoza, Valle de Uco e de Valles Calchaquíes são bastante afortunadas. Se os vinhos são uma herança europeia, a yerba mate (a que os brasileiros chamam de chimarrão) provém dos nativos índios, bebida quente bastante consumida na Argentina e boa para acalmar espíritos.

 

Sopa de letras
O mundo foi-se rindo com as tiras da Mafalda, a menina pensadora e humanista inventada por Quino. As sopas, o estado do mundo e a disfuncionalidade da sociedade foram irritações desta menina que, afinal, era mais universal que só argentina, tal como o escritor de BD que se foi especializando no humor social. Fã de literatura portuguesa, Jorge Luis Borges é um dos grandes escritores argentinos, que criou seguidores muito à conta do livro de contos "Ficções". Talvez a sua tendência para o fantástico seja uma forma de dizer que a sua imaginação não tem limites. O mesmo se pode dizer de Julio Cortázar, também bem habituado a contos, e que criou também o seu estilo pouco convencional, livre de formatos - foi poeta, ensaista, humorista, o que a escrita naquele momento pedir. A literatura argentina já foi fonte para filmes de Hollywood, como "O Beijo da Mulher-Aranha" (com uma grande interpretação de William Hurt) de Manuel Puig, já atraído pela sétima arte no livro "A Traição de Rita Hayworth". O cinema argentino já subiu por duas vezes ao palco dos oscarizados, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, através de "A História Oficial" (de 1985) e "O Segredo dos Seus Olhos" (de 2009). O cinema argentino tem-se destacado atualmente pela sensibilidade mais feminina de Lucrecia Martel - homenageada na edição deste ano do IndieLisboa.

A capital Buenos Aires, a Paris da América do Sul, é hoje uma atração histórica, com o bairro colorido de La Boca que fervilha de tango nas ruas (e com Maradona nos murais), o lindíssimo Café Tortoni (antigo ponto de encontro entre os intelectuais) ou o El Viejo Almacén (a grande casa de tangos em San Telmo). Fora de Buenos Aires, há um imenso país a descobrir, como a árida região da Patagónia, que já inspirou um famoso livro de Bruce Chatwin "Na Patagónia", com várias preciosidades, como as Cuevas de Las Manos, grutas com pinturas de mãos com mais de 9000 anos. Mais abaixo, está na ponta sul a Tierra del Fuego, com os seus picos montanhosos pintados de branco pela neve. Não muito longe, está o enorme Glaciar Perito Moreno, autêntico monumento natural, tal como, noutro ambiente absolutamente oposto, no noroeste, aquelas rochas que são autênticas esculturas nos desérticos parques de Ischigualasto e de Talampaya, que dariam uma ótima atmosfera de western, tal como os Vales de Calchaquí. Mas o homem já conseguiu desafiar a natureza com o circuito ferroviário tão vertigonoso quanto bonito do Tren de las Nubes, também no noroeste argentino. Na reserva natural da Península Valdés, é toda uma fauna, de pinguins, guanacos e raposas acizentadas. Já que se fala de fauna, é bom lembrar que este é o país das lamas e das pumas. A nível de botânica, os catos decoram muita da paisagem do noroeste.

É da Argentina um dos maiores pilotos de fórmula 1 de sempre, nem mais nem menos que o pentacampeão mundial Fangio. Isto aconteceu nos anos 50, década em que a Argentina foi campeã do mundo de basquetebol. Cinquenta anos mais tarde, o basquetebol argentino volta a reavivar-se em grande, com a medalha de ouro olímpica em 2004 e um grande jogador da NBA chamado Manu Ginóbili, o grande herói argentino dos pavilhões. Outra paixão que tem vindo a crescer é o râguebi, com resultados internacionais bastante interessantes para os pumas, como um 3º lugar no Mundial de 2007, e um dos melhores jogadores do mundo de então, Agustín Pichot. O pólo sempre foi muito seguido na Argentina, tal como a equipa de hóquei em campo feminina, Las Leonas, que já levou ao país quatro medalhas de ouro olímpicas e dois títulos mundiais. No hóquei em patins, já se sabe, a Argentina é um dos quatro gigantes mundiais, graças aos numerosos praticantes na região de San Juan - alguns dos grandes praticantes como Panchito ou Nicolia, já mostraram a sua arte nos nosso ringues ao serviço do Benfica.