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Viagem à Dinamarca: dos doces ao andebol

Seleção nórdica vive anos de euforia e tem um futebol que dá gosto ver.

Gonçalo Palma

O país que tornou a nossa infância melhor, graças às peças de Lego e aos contos de Hans Christian Andersen, tem-nos encantado com um futebol que dá gosto ver. Além de um jogo alegre, a seleção tem tido ainda eficiência. Os dinamarqueses estão na iminência de brindar muitas vitórias com cerveja - dinamarquesa, claro.

Candidatos a novo brilharete
Os dados da retoma da seleção dinamarquesa são esclarecedores. Estiveram na fase de eliminatórias do Mundial de 2018, chegaram às meia-finais do Europeu do ano passado e fizeram uma fase de apuramento para o Catar 2022 quase perfeita, com 27 pontos em 30 possíveis. Tal como no Mundial de 2018, a Dinamarca volta a estar no grupo da favorita França. Mas se não foram derrotados pelos gauleses há quatro anos, agora surge outro aviso: a Dinamarca já venceu França por duas vezes em 2022 nos jogos oficiais para a Liga das Nações. 
Além de um estilo jogo excitante e vivo, a equipa dinamarquesa é bastante funcional e coletivista na forma como disputa as partidas, cada um com um mérito indivudual distinto, com o telecomando do selecionador Kasper Hjulmand. A força da Dinamarca atual é visível no leque de jogadores, com muitos deles a destacarem-se nas cinco ligas mais competitivas da Europa. Na baliza, o indíscutível é Kasper Schmeichel (do Nice). Defesas centrais é coisa de que não se podem queixar, como Mæhle (da Atalanta), Andreas Christensen (do Barcelona) e o capitão Kjær (do AC Milan), que está a caminho de se tornar o mais internacional de sempre da seleção dinamarquesa. O meio-campo é um motor de topo de gama, com Thomas Delaney (do Sevilha), Højbjerg (do Tottenham) e o renascido Christian Eriksen (do Manchester United) depois do susto da paragem cardíaca no último Europeu de Futebol. No ataque, está em ascensão o extremo Skov Olsen, do FC Brugges, um dos carrascos do FC Porto no 0-4, no Dragão, onde marcou um dos golos. E há ainda Dolberg (do Sevilha), que apesar de uma carreira clubística mais discreta, teve uma partipação notável na excelente campanha do país no Europeu de 2020. Para o banco, o lateral direito do Benfica, Alexander Bah, vai a tempo de entrar nas contas do selecionador.

 

Férias de 1992 interrompidas para o título europeu
Ainda hoje parece uma fábula a caminhada da selecção dinamarquesa quando ganhou o Euro 1992. Convocados a meio das férias depois da suspensão em cima da hora da Jugoslávia (por causa da guerra dos Balcãs), os jogadores dinamarqueses eram os underdogs do torneio, as presas fáceis para as favoritas (e melhores preparadas fisicamente) Inglaterra (4ª no Itália 90) e França de Papin, e mesmo para os vizinhos e anfitriões suecos. Mas a Dinamarca sobreviveu e mandou os franceses para férias antecipadas, aquelas mesmo que Laudrup e companhia não se importaram de interromper. Por quantos a Holanda de Gullit e Van Basten (e de Koeman e de Bergkamp) iria ganhar nas meias-finais, perguntava-se. Bem… Como a Laranja Mecânica não matou o jogo, seguir-se-iam os penaltis, onde estava um muro chamado Peter Schmeichel, que prolongou com a sua luva o sonho para a final. Quem os esperava eram os alemães, já a fazer contas para mais um título internacional. Mas já ninguém poderia parar a Dinamarca para um inesperado título europeu numa das maiores surpresas de sempre do futebol, com uma lição a tirar: nunca subestimem adversários mais fracos, mesmo que possam vir com uma corzinha de sol.
 
A história da seleção dinamarquesa é curiosa. Com tradição olímpica no futebol - e três medalhas de prata (em 1908, 1912, e 1960), quem nos dera a nós - só se estrearam num Mundial em 1986, mesmo que tenham tido nos anos 70 um Bola de Ouro chamado Allan Simonsen. Mas o batismo no México '86 era logo com uma formação candidata ao título mundial e alcunhada de Dinamite Dinamarquês, com explosivos como Elkjær Larsen, o menino d’oiro Laudrup e Lerby. Ganharam os três jogos da primeira fase, incluindo contra a Alemanha Federal de Völler e Matthäus, mas caíram de forma estrondosa perante um endiabrado Butragueño que escolheu aquela tarde de 18 de junho de 1986 como a mais inspirada da sua carreira, assinando um poker (4 golos!) que ajudou a Espanha a golear a Dinamarca por 5-1.
 
Bem menos emocional é história dos clubes dinamarqueses, quase todos semi-amadores. Há sempre a esperança de poder erigir um gigante internacional dentro daquele pequeno reino escandinavo. O sonho de há alguns anos chama-se FC Copenhagen, que para já é apenas um papa-títulos interno.
 
Muito circunstancialmente, foram passando pelo futebol português alguns jogadores dinamarqueses. Lembram-se daquele "alto, loiro e tosco" benfiquista com quem o treinador portista José Maria Pedroto embirrava. Ele era o avançado guedelhudo Michael Manniche (o tal que influenciou o nome do centro-campista português Maniche) que, apesar do estilo pesadão e pouco habilidoso, ainda valeu bastantes golos ao Benfica entre 1983 e 1987, autênticos petardos que testavam a resistência das redes da baliza. Outro grandalhão dinamarquês residia mesmo na baliza. Era o guardião sportinguista Peter Schmeichel que vinha tão viciado em títulos (cinco Premier Leagues, campeão europeu das nações, e uma Liga dos Campeões acabadinha de vencer) que ajudou a quebrar o jejum leonino de 18 anos sem ser campeão em menos de 12 meses. Mereceu a ovação de um estádio inteiro, no antigo Alvalade, quando subiu ao palanque dos campeões, na noite de consagração - e uma das mais longas para os sportinguistas - a 14 de maio de 2000.             


A bateria carregadora dos Metallica
Muito provavelmente, o músico dinamarquês mais conhecido em todo o mundo pertence a uma banda norte-americana. Falamos do baterista e fundador dos Metallica, Lars Ulrich. Confundidos como norte-americanos pela sua sonoridade hard-rock e pela fluência na língua inglesa, os D.A.D. são a banda dinamarquesa que mais invadiu o éter radiofónico internacional no final dos anos 80 e início dos anos 90, com malhas como 'Sleeping My Day Away' ou 'Rim of Hell'.
 
Com garras rock mais alternativas, os Raveonettes têm brilhado em muitos festivais pelo mundo fora. Também do mundo indie, Oh Land coloriu a pop com as suas coreografias bem dançantes. Na pop propriamente dita, num contexto mais eurodance, os Aqua criaram a sua 'Barbie Girl' (de 1997) e uma conta mais avultada.
 
É na Dinamarca que está um dos maiores festivais rock do mundo, o Festival de Roskilde, no norte da ilha maior Zealand. Criado durante a era hippie, foi atraindo os maiores nomes como os Kinks (1972), Bob Marley (1978), U2 (1982), Sting (1988), David Bowie (1996) ou os Rolling Stones (2014), com uma matriz alternativa, que permitiu ter alguns nomes de culto do momento. A nível de audiofilia, os sistemas sonoros da dinarmarquesa (pioneira em tecnologia) Bang and Olufsen fazem as delícias dos mais exigentes.

 

O reino da cerveja
A obsessão dos dinamarqueses (e dos escandinavos) por comida italiana, com pizzarias e afins a cada esquina, quase que extingue a comida local, difícil de encontrar nas ruas, mesmo numa cidade de província mais longe da cosmopolita Copenhaga. A ligação do povo com a gastronomia é mais utilitária que cultural. Por isso, é difícil de acreditar que é em Copenhaga que está o restaurante tido em tempos como o melhor do mundo, como o Noma, conhecido por ter "reinventado a cozinha nórdica".

Na vida real, longe das estrelas Michelin, o que se vê com frequência são os smørrebrød, sandes abertas, em que o pão escuro (normalmente de centeio) serve como se fosse prato de loiça, onde se põe tudo em cima, desde carnes e ovo mexido, a camarões, filetes de peixe, pepinos ou rodelas de tomate, sempre com creme de rábano picante ou molho de mostarda prontos a molhar. Os smørrebrød são lindos para decorar mesas e até montras de cafés, o mesmo que acontece com a famosa doçaria dinamarquesa, que faz das confeitarias autênticos museus, com bolos com os mais diversos feitios. As bolachas de manteiga têm fama escandinava, mas os wienerbrød (cobertos de chocolate ou de doce de maçã, entre outras coisas) também a merecem.

O que é de qualidade indubitável bar sim bar sim, torneira sim torneira sim, é a cerveja. A Carlsberg e a Tuborg são as maiores distribuidoras, mas a mais idolatrada entre os apreciadores é de longe a Mikkeler, que já se vai encontrando por cá. É dinamarquesa a sidra mais famosa por cá, a Sommersby, mais ao gosto adocicado de quem gosta de refrigerantes. A nível de bebidas destiladas (no caso, a partir das batatas e cereais), um copinho de akvavit faz parte dos costumes sociais.

 

Parque infantil gigante
Não é preciso ter-se uma herança histórica romana para um país ser bonito. Basta ter design e arquitetura de ponta, que é o que acontece com a Dinamarca, um país de cidades harmoniosas, casas coloridas (com uma queda para o amarelo torrado) e objetos tão funcionais quanto prazerosos ao olhar. A grande obra de arquitetura de reconhecimento internacional por um dinamarquês é a Sydney Opera House de Jørn Utzon. Conhecidos pelo design, desde candeeiros minimalistas e cadeiras encurvadas a tigelas majestosas, expandiram novos conceitos de bicicletas como as cargo bikes (de três rodas e com um enorme depósito à frente do guiador), num país repleto de ciclovias e com algumas das cidades mais funcionais do mundo como Copenhaga. Mas a nível de design, o conceito que mais revolucionou foi a Lego, que se meteu na nossa infância e na nossa paternidade com aquelas peças que nos deixam construir o que a nossa criatividade permite.

É deste país dado ao imaginário infantil que veio o escritor de (mais de três mil!) contos infantis Hans Christian Andersen que nos embalou em tantas noites. O cinema de animação agradeceu esta fonte literária fantasiosa, incluindo a Disney. Mas há muito mais na literatura dinamarquesa. O filósofo existencialista Kierkegaard cruzou-se nos nossos manuais escolares. E a escritora Karen Blixen escreveu o livro autobiográfico "África Minha", sobre a vivência na Quénia colonial, que serviu de base ao filme oscarizado de Sidney Pollack do mesmo nome.
 
O cinema dinamarquês propriamente dito tem algum peso histórico, muito graças à filmografia de Carl Theodor Dreyer, conhecido pelas suas temáticas religiosas, sobretudo no filme "A Palavra" (de 1958), mas também pela forma dramática como captou o rosto da soldada mártir francesa Joana D' Arc no filme mudo de 1928, "A Paixão de Joana d'Arc". Lars Von Trier é hoje o cineasta dinamarquês mais reconhecido e premiado, autor de filmes como "Ondas de Paixão" (de 1996) e "Os Idiotas" (de 1998), ou da sua visão cética sobre a América em "Dogville" (de 2003). Ele foi um dos cabecilhas do movimento dinamarquês Dogme 95, que instigou o cinema de câmara à mão, sem estúdio e sem efeitos especiais, filmado em 35mm e contra o artificialismo. A nível de produção audiovisual, a Dinamarca tem dado também cartas a nível de séries de TV. O policial "The Killing: Crónica de um Assassinato" ou a série sobre uma Primeira-Ministra da Dinamarca "Borgen" animaram muitas conversas por cá.      

O andebol é outra das grandes paixões dos dinamarqueses. A seleção masculina é a atual campeã mundial de uma modalidade muito praticada pelas mulheres, o que tem permitido um grande palmarés à equipa feminina: três medalhas de ouro olímpicas, três vezes campeã europeia e um título mundial. O ciclismo dinamarquês costuma ganhar medalhas e até já teve um vencedor de um Tour de France: Bjarne Riis, em 1996. Com uma rede pelo meio, há o fenómeno presente no badminton de Viktor Axelsen, que tem ganho tudo nos individuais masculinos: campeão olímpico, campeão mundial e campeão europeu.