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Gonçalo Palma
22 maio 2023, 07:00
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Expo 98: a descoberta do Oriente de Lisboa começou há 25 anos

Expo 98: a descoberta do Oriente de Lisboa começou há 25 anos
Mario Cruz/LUSA
Gonçalo Palma
22 maio 2023, 07:00
Grande evento dedicado ao futuro dos oceanos recuperou uma zona abandonada da cidade.

Há 25 anos arrancava a Exposição Mundial de Lisboa, na zona oriental da capital, que ficaria conhecida como o Parque das Nações. 1998 tinha o simbolismo forte de acertar em cheio com os 500 anos do descobrimento do caminho marítimo para a Índia, por Vasco da Gama. Mas os portugueses descobriam nesse ano de 1998 um outro oriente, a zona oriental de Lisboa, outrora uma espécie de cidade industrial fantasmagórica e impenetrável. Com a Expo 98, Lisboa deixou de estar virada de costas para o rio na zona ribeirinha oriental, entregando-a finalmente aos cidadãos. 

A 22 de maio de 1998, numerosos edifícios eram estreados, ainda na função de pavilhões temáticos, como o caso do Pavilhão de Portugal. Foi debaixo da impactante pala do Pavilhão de Portugal, arquitetado por Siza Vieira, que o pianista Michael Nyman, o tenor catalão José Carreras e os portugueses Madredeus deram os seus concertos na sessão de abertura, diante das mais altas figuras do Estado – o Presidente da República, Jorge Sampaio, e o primeiro-ministro António Guterres -, o mentor e dinamizador da Expo 98 António Mega Ferreira e os visitantes Reis de Espanha, Juan Carlos e Sofia.

O concertos dos Madredeus estava a ser transmitido em direto na televisão e teve como um dos momentos altos o dueto entre a cantora do grupo, Teresa Salgueiro, e José Carreras. "Tenho uma excelente memória, de um momento que me marcou a mim e a muita gente. Ainda me falam na rua desse momento que muita gente viu na televisão", afirma Teresa Salgueiro, em declarações à nossa rádio. "Eu estava no quarto mês da gravidez. Tínhamos vindo de um concerto em Saragoça no dia 20 e viemos fazer aquela participação na Expo’ 98 no dia 22. Depois [atuámos] dia 23 em Madrid e dia 24 em Múrcia. E seguimos para o Japão, onde fizemos oito concertos e fomos para Macau. Tenho boas memórias desse tempo e estava a acontecer muita coisa ao mesmo tempo".

 

A preenchida agenda ao vivo dos Madredeus mal deu tempo para a formação lisboeta poder ensaiar Haja O Que Houver com José Carreras. "Chegámos na antevéspera. Tivemos ensaio para própria tarde com o José Carreras. Era um clima de grande entusiasmo, de grande alegria e de grande entrega", enquadra Teresa Salgueiro, sobre uma memória doce, de um momento em que a víamos a sorrir na mediática atuação dos Madredeus. 

Sem grande surpresa, Teresa Salgueiro não teve tempo para ser uma normal visitante da Expo’ 98. "Só voltei à Expo para cantar. Aí já estava no sétimo mês de gravidez. Nem sequer visitei nada, porque era um dia de calor. Vinha daquele corropio todo. As minhas memórias da Expo estão nas palavras e no entusiasmo de amigos e de outras pessoas que a visitaram. Houve uma requalificação da cidade e toda a repercussão internacional que a Expo teve. Foi um evento marcante". 

 

Hoje, em que se celebram os 25 anos de abertura da Expo, vai ter lugar no Teatro Camões um espetáculo de tributo a Mega Ferreira organizado por amigos do comissário da Expo’ 98, que a idealizou. Teresa Salgueiro é uma das ilustres participantes, a par da Mafalda Veiga, que endereçou o convite à ex-vocalista dos Madredeus. Atuará também a Orquestra Metropolitana [de Lisboa] dirigida pelo maestro Pedro Neves, e vai haver leitura de textos de Mega Ferreira, por Margarida Pinto Correia e Filipa Leal. Mafalda Veiga vai cantar um tema de Paolo Conte traduzido pelo Mega Ferreira, Parigi. Teresa Salgueiro vai interpretar um tema de José Saramago, “que também esteve ligado à Expo de forma muito intensa” - lembra a cantora. 

Até ao dia 30 de setembro, a animação no recinto colado ao Tejo foi permanente e intenso. Além dos espetáculos diários ligados à temática da exposição, os Oceanos, houve concertos para todos os gostos, incluindo de nomes fortes, como os Garbage, Caetano Veloso, Ringo Starr ou Lou Reed.

 

Entre os vários palcos espalhados pelo recinto, havia um em especial, o Palco 6, mais atento à nova música portuguesa. O programador desse palco era o radialista Henrique Amaro. "O convite para a minha colaboração com a Expo 98 veio do João Paulo Feliciano, artista plástico e músico. Eu estava muito ligado a ele por causa da banda que tinha, os Tina & The Top Ten. O João Paulo já estava na equipa da Expo, a trabalhar com outras pessoas naquilo que se tornaria no Aquamatrix, um espetáculo noturno que fechava a Expo e que corria sobre a água, na Doca dos Olivais. O João Paulo, um dia, faz-me um convite inesperado para mim: se estaria interessado em trabalhar na Expo como o programador de um dos palcos, o que viria a ser o Palco 6. Foi possivelmente o meu grande desafio profissional, o primeiro desafio que tive para lá da rádio".

Henrique Amaro, conhecedor profundo do ambiente ao vivo de programação e divulgação da nova música portuguesa, em espaços míticos como o Rock Rendez-Vous ou o Johnny Guitar (em Lisboa), ou o Hard Club (antigamente, em Vila Nova de Gaia), estava provavelmente a fazer algo similar no Palco 6 da Expo, em que se estavam a descobrir artistas novos, numa zona de bares e de restauração não assim tão longe da Praça Sony. "O propósito poderia ter sido o mesmo. Eu trabalhava sob a ordem do Departamento de Animação, dirigido pelo encenador João Brites, felizmente ainda hoje ligado ao teatro, ao Bando. Tinha uma equipa muito alargada. Esse departamento era responsável por todos os espetáculos ao ar livre na Expo. Além desses pequenos palcos, como o Palco 6, era responsável pelo Aquamatrix, pelos Olharapos - um espetáculo que realizava diariamente no recinto da Expo - e pela programação da Praça Sony. Na altura perdiram-me o perfil do que seria o Palco 6. Na minha inexperiência mas também na minha grande vontade de fazer alguma coisa era que o Palco 6 fosse um reflexo musical da emergência. Seria o palco de emergência. A questão da memória estava muito defendida noutros palcos. Eu queria que o Palco 6 fosse um espelho da realidade mais emergente que se estava a fazer em Portugal. Sem dúvida que foi isso que fez o Rock Rendez-Vous durante dez anos [entre 1980 e 1990]  e o Johnny Guitar no início dos anos 90. O contexto ali [no Palco 6] tinha outras condições: era um palco aberto, disponível e gratuito a todas as pessoas que estivessem lá dentro. O que eu queria muito era mostrar. Houve duas preocupações que me passaram pela cabeça: não só nós, portugueses, visitavam a Expo, mas também a perspetiva internacional - a pessoa de fora de Portugal que vem visitar a Expo e que passe pelo Palco 6. Portanto, havia uma ambição de mostrar uma modernidade que estava espelhada na arquitetura e no conceito da Expo mas que eu queria que no Palco 6 estivesse estampada, para que a pessoa que não conhecesse a realidade portuguesa se pudesse sentir surpreso. Sem dúvida que, sem nunca pensar nisso, aquilo que aconteceu no Rock Rendez-Vous, no Johnny Guitar e noutros pontos em menor escala, servia de referência, para uma ideia de música portuguesa contemporânea". 

 

O Palco 6 criou uma rotina de descoberta em muitos notívagos da Expo 98 mais dados à música urbana nacional. Sem se saber quem ia tocar, muitas das pessoas já sabiam do conceito e também do ambiente familiar e composto. “O mais surpreendente foi o volume que ganhou, a proximidade que conseguiu garantir com as pessoas. É muito difícil conseguir que um determinado espaço seja um ponto de encontro entre pessoas que querem comunicar com as outras e também que estejam disponíveis para serem surpreendidos do ponto de vista musical. Gozarem aquilo que conhecem e estarem disponíveis para descobrirem aquilo que não conhecem. O Palco 6 transformou-se um pouco nisso, não só as pessoas que visitavam a Expo e do conhecimento que já tinham daquele palco, que àquela hora iria acontecer qualquer coisa, como os próprios trabalhadores da Expo. O Palco 6 tornou-se no ponto de encontro entre as pessoas ligadas às luzes, ao som, à produção. Ao final da noite, era ali que se encontravam, ali voltavam, para beber uma cerveja com os amigos e iam ver música nova. Isso foi o que mais me impressionou”, relata Henrique Amaro, figura que viamos junto à mesa de som, a acompanhar o palco que programava.

 

Para Henrique Amaro, a Expo 98 mudou mais a vida dos profissionais técnicos do que propriamente a classe dos músicos. “Foi dada uma oportunidade a pessoas que estavam nos recursos humanos. Os que já sabiam fazer as coisas, puderam fazê-lo mais e melhor. E os que não sabiam fazer, como era o meu caso, puderam aprender a fazer, experienciando algo de novo. O que é que aconteceu na Expo’ 98 a nível técnico e de formação? Houve muitos equipamentos novos que chegaram ao país. Houve como que um estágio prático. Houve muitas experiências, muita tecnologia que foi abordada pela primeira vez. O volume de trabalho era tanto que a experiência tornou essas pessoas mais capazes. Aí foi transformador. Para os músicos, foi interessante, Deram os seus concertos e foram para casa. A vida continuou igual. Para os profissionais, seja na montagem, seja na produção, seja a resolver problemas de última hora, a fazer som, aí sim, Portugal ganhou um grande número de profissionais”.

Das cento e muitas noites vividas por Henrique Amaro junto ao Palco 6, o histórico radialista da Antena 3 lembra-se de uma em particular. “Para tudo estar pronto em maio de 1998, tivemos que começar a trabalhar muito cedo, talvez dois anos antes, quando comecei a trabalhar no Palco 6. Havia uma banda de maquetes que eram os Silence 4. Eu, como estava atento a essa realidade, programei também os Silence 4, uma banda totalmente desconhecida em 1996. Eu tinha uns escalões para bandas mais conhecidas. Havia vários escalões de pagamentos para as bandas que iam tocar no Palco 6. Programei os Silence 4 para um espaço que tinha uma limitação de 400 pessoas. Como não tinha paredes e era alargado, a multidão poderia ser maior. Em ano e meio/dois anos, os Silence 4 transformaram-se numa banda que tinha umas músicas gravadas em cassete para a grande banda do país. Quando chegaram à Expo’ 98, já tinham 150 mil a 200 mil discos vendidos. Um fenómeno de popularidade. Só que já estavam contratados para o Palco 6. Estavam a criticar-me: ‘como é que uma banda daquela dimensão estava a tocar num palco tão pequeno?’. A minha resposta era natural: ‘a programação não foi feita na semana passada, foi feita há ano e meio. Era natural que há ano e meio ninguém conhecesse os Silence 4”. A música tem destas surpresas: a passagem da obscuridade para um grande nível de popularidade acontece de um dia para o outro. Estavam milhares de pessoas. A grande parte não viu ou ouviu o que estava a acontecer”. 

O antigo líder dos Silence 4, David Fonseca, tem memórias bastante precisas dessa enchente no Palco 6, para o concerto da banda de Leiria, já um fenómeno comercial com as elevadas vendas do álbum de estreia lançado pouco tempo antes, "Silence Becomes It". "Quando tocámos no Palco 6, a loucura já se tinha instalado há volta dos Silence 4. Havia dez vezes mais pessoas do que as que cabiam. Foi das primeiras vezes em que percebi que alguma coisa de muito especial estava a acontecer com a banda. Nós tínhamos conseguido um concerto no Palco 6 meses antes do álbum ter saído. Éramos uma espécie de banda promessa. Nós faziamos parte das bandas promessa que iam tocar no Palco 6. Quando chegámos ao Palco 6, era demasiado pequeno para a realidade da banda. Fomos fazer o soundcheck e já havia centenas de pessoas à nossa espera".

 

Coube aos Silence 4 a honra de fecharem a Expo 98 no palco maior do recinto, a Praça Sony, no célebre 30 de setembro de 1998, dia que registou o recorde de 215 mil entradas. "Os Silence 4 tinham sido a banda revelação em 1998, vinda do nada e que teve uma recetividade do público absurda. Acabámos por ter esse convite. Lembro-me que os meus pais mal conseguiram ver o concerto, tantas as pessoas que vieram. Era um mar de gente tão absurdo que nem um quinto das pessoas conseguiram ver o concerto. Viam-nos lá ao longe, de um Jumbotron (um grande ecrã da marca Sony] em cima do palco. Para mim, foi um prazer enorme, especialmente depois de ter tocado o Chuck Berry [no mesmo palco], que é uma lenda vida. Mas foi muito divertida, essa noite". 

1998 tornar-se-ia o ano mais decisivo para a vida de David Fonseca. E há mais momentos na cronologia mensal de 1998 para os Silence 4 que os liga ao então novo Parque das Nações. "Aquilo que aconteceu com os Silence 4 é raro acontecer com qualquer banda. Não tem a ver com a banda ser melhor ou pior. O ano de 1998 é muito estranho para mim. Comecei o ano como um perfeito anónimo, em dezembro estava a tocar naquele que é agora o Altice Arena [então com a designação de Pavilhão Atlântico]. A minha vida deu uma volta de 180º sobre aquilo que eu fazia no dia-a-dia, que foi avassalado pelo mundo da música de uma forma muito positiva. Nunca esperámos. Quero dizer, esperávamos vir a ter sucesso, porque todas as bandas querem ter sucesso, mas não assim. Parecia um conto de fadas, uma coisa que só acontece uma vez na vida".

Os Clã foram uma das bandas que mais vezes atuou na Expo 98. Para a cantora do grupo, Manuela Azevedo, “são memórias maravilhosas, foi um ano incrível para os Clã. Tocámos imenso, andávamos com a digressão do Kazoo na estrada. Foi mesmo um ano de muita estrada, o que fez com que chegássemos à Expo 98 já muito rodados. Muita genica, muita vontade de mostrar as canções. Também coincidiu com o encontro das pessoas com as nossas canções. Foi uma época muito feliz de descoberta desse público, que conheciam e que levavam as músicas para as suas casas e para as suas vidas. Ainda por cima, puderam fazê-lo no ambiente muito especial da Expo 98. Era gente muito feliz, a descobrir coisas sobre outras nações e sobre outras culturas. Todo o ambiente dessa exposição foi de muita celebração e de alegria”.

Numa era em não havia YouTube, o passe-a-palavra tinha alguma influência. Um dos momentos em que o público pôde aferir os comentários positivos que se iam fazendo sobre os concertos poderosos dos Clã aconteceu a 1 de agosto de 1998. "Estivemos no festival Super Bock Super Rock, na Praça Sony, num palco gigantesco, numa noite que nos correu muito bem e que não correu tão bem para as outras bandas que passaram por lá".  Houve percalços com Van Morrison, num concerto dado em regime apressado, e com os Spiritualized. Estes últimos tinham acabado de perder três dos membros, despedidos pelo seu líder Jason Pierce, que teve que improvisar nova formação com os músicos de Van Morrison. "Quando subimos a palco, as pessoas estavam ansiosas por ver alguma coisa assim mais normal. E o concerto correu maravilhosamente, com muito eco na imprensa. Foi uma noite muito feliz para nós. Trouxe muita visibilidade à banda”. Manuela Azevedo consegue singularizar um momento muito especial dessa acalorada atuação na Expo 98, integrada na quarta edição do Super Bock Super Rock: "vermos todas as pessoas a cantar o Problema de Expressão é uma memória que não se desvanecerá nas nossas cabeças durante muito tempo. Acho que vamos guardar para sempre como algo muito especial, com uma comunhão muito grande com milhares de pessoas que estavam ali à nossa frente”. 

 

Mas o primeiro concerto dos vários dos Clã na Expo foi no Dia de Portugal, a 10 de junho, num dos vários palcos laterais. Os Clã receberam ainda a encomenda do espetáculo Afinidades, também para a Expo 98, que propiciou o encontro da banda com Sérgio Godinho. Fizeram duas noites no palco flutuante. "Só tenho boas memórias, antes do concerto e depois do concerto. Depois havia essa coisa boa de acabares de tocar e estares com as pessoas logo ali, e poderes ver outros espetáculos e outras coisas no parque da exposição. Foram uns meses incríveis de celebração do que há de melhor na humanidade".