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Gonçalo Palma
20 novembro 2023, 15:34
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Sara Tavares: o pulo de "Balancê" para África... e para si própria

Sara Tavares: o pulo de "Balancê" para África... e para si própria
DR - da capa do álbum Balancê
Gonçalo Palma
20 novembro 2023, 15:34
Em 2005, a cantora encontra o seu caminho autoral e o seu amadurecimento.

Na escala galática da televisão, Sara Tavares será para sempre ligada a momentos mediáticos do ano de 1994, como a vitória da primeira edição do concurso apresentado por Catarina Furtado, "Chuva de Estrelas" (no altar do mui jovem canal SIC), ou o triunfo no Festival da Canção, por intermédio do tema 'Chamar a Música'. No terceiro canal ou no primeiro (a RTP1), a cantar a versão de 'One Moment In Time', arranjada como uma réplica de Whitney Houston, ou a interpretar a canção 'Chamar a Música' no Festival da Canção, Sara Tavares tornava-se familiar em centenas de milhares de lares portugueses, como um talento adolescente a vingar num mundo adulto e competitivo tão cedo, com uma voz inegavelmente poderosa.

Se 1994 é o ano triunfal e de revelação na tabela cronológica da curta vida de Sara Tavares (1978-2023), 2005 é o ano em que a cantora se encontra com a artista, na descoberta marítima do seu próprío caminho autoral em África e sobretudo em Cabo Verde. Essa descoberta autoral é o seu terceiro álbum, "Balancê", uma maturação em pleno de uma ascendência musical africana que desconhecia quando furou o anonimato aos 16 anos. Em 2005, Sara Tavares era já uma mulher madura de 27 anos de idade, aconselhada pelo amigo Kalaf Ângelo (decisivo na conceção artística dos Buraka Som Sistema) e também próxima do cantor Melo D - dois dos convidados de "Balancê" - e com cada vez mais sabedoria na triagem pessoal da música étnica que lhe interessava. Na vida de Sara Tavares, a distância musical entre 1994 e 2005 é maior do que a distância temporal de 11 anos. 

Mas a paisagem africana de "Balancê" não surgiu de um dia para o outro na música de Sara Tavares. Houve um processo de deswhitneyzação que demorou o seu tempo mas que foi sempre progressivo. Sara Tavares já procurava algo mais do que os seus horizontes auditivos de infância e de adolescência de soul e pop quando lançou em 1996 o seu álbum de estreia, "Sara Tavares & Shout!", num transplante do universo gospel e soul de Whitney Houston para Portugal e para a nossa realidade. Ao segundo álbum, "Mi Ma Bô" (de 1999), o crioulo entrava no seu léxico, mas a linguagem musical predominante continuava a ser a pop. 

Porém, em 2005, em "Balancê", a música de Sara Tavares já não se diluía numa indiferenciação quando envolvida num contexto internacional. Tomando as rédeas por completo, incluindo na produção, Sara Tavares conseguiu personificar a sua música e singularizá-la, entrando com pujança no roteiro da world music. Fez o seu puzzle de sons, encaixando ao seu estilo livre peças do mapa de África, com maior ampliação nos países de expressão portuguesa, e com ainda mais zoom no arquipélago de Cabo Verde. O puzzle de sons ao modo de Sara Tavares era também um encaixe transcontinental de sons, como se os continentes se movessem para um só supercontinente e as fronteiras omissas da música baralhassem as fronteiras estatuais. Funaná e afrobeat tornavam-se consanguíneos e o reggae acasalou com a coladeira, no milagre de "Balancê". Sabendo ouvir monstros musicais como o cabo-verdiano Paulino Vieira ou o cavaquista português Júlio Pereira, Sara Tavares desenhou uma Lisboa africana onde a paz, a tranquilidade, as boas vibrações e o amor predominam.

"Balancê" foi só um ponto de partida no caminho de Sara Tavares. Discuti-lo como o seu melhor álbum terá contra-argumentação musical nos seus discos subsequentes, "Xinti" (de 2009) e "Fitxadu" (de 2017). Dantes, a música africana estava mais separada da portuguesa. Mesmo habitando em Portugal, a música africana feita na metrópole lisboeta vinha de músicos como Paulo Flores, Bonga ou Dany Silva, que se assumiam tão só como angolanos (no caso dos dois primeiros) ou como cabo-verdiano (no caso do terceiro). Sara Tavares é das primeiras artistas portuguesas a fazer música africana (ou africanizada), num legado que tem tido continuação, cada um com a sua coordenada, em Dino D' Santiago, em Selma Uamusse ou Batida (o projeto de Pedro Coquenão), só para nomear alguns.

Numa noite de novembro de 2005, Sara Tavares estava a apresentar ao vivo as canções de "Balancê" numa sala sobrelotada, o então em voga Santiago Alquimista (em Lisboa). A estética africana fresca foi uma das sensações mais fortes que ficou dessa noite, tal como o enorme sorriso de Sara Tavares, que jamais esmoreceu em toda a atuação. Deixou-nos o 'Bom Feeling'.

Artigo de opinião.