Ouça a M80, faça o download da App.
Gonçalo Palma
14 julho 2024, 03:36
Partilhar

Pearl Jam no Alive, ou quando o rock é a reserva da humanidade

Pearl Jam no Alive, ou quando o rock é a reserva da humanidade
Rúben Viegas
Gonçalo Palma
14 julho 2024, 03:36
Eddie Vedder em excelente estado de saúde vocal, à frente de um maquinão instrumental.

Mal soou a voz encorpada de Eddie Vedder, a cantar o tema de arranque 'Daughter' no palco maior do NOS Alive, a numerosa multidão de fãs terá sentido um alívio. Percebeu-se logo que iriamos ter um concerto de Pearl Jam à antiga.  

Eddie Vedder surge-nos de bigode e de chapéu. Ao seu lado, sentimos que o tempo também passa pelos seus companheiros, como uma vaga grisalha, exceto o baixista Jeff Ament, que continua a gozar de imunidade visual ao envelhecimento.

Como a caixa de velocidades do maquinão instrumental dos Pearl Jam é boa, facilmente a formação de Seattle acelera ferozmente nos temas recentes do último álbum, ‘Dark Matter’, com o tema-título e ainda ‘React, Respond’.

Cumpridas as três primeiras músicas do seu ofício de cantor, Eddie Vedder mostra então o seu lado humano, ao ler em português esforçado uma folha do seu caderno, como um aluno da 1ª classe que luta por soletrar palavra a palavra, perdendo-se no próprio texto. Mas a mensagem passou, num gesto enternecedor a que os seus fãs já estão habituados. E fez então um brinde a nós todos com a sua amada garrafa de vinho.

Quando se possui por ‘Animal’, a adrenalina é grande e, tudo indica, imparável para o resto da noite. Em ‘Animal’, sente-se o empenho de Eddie Vedder em fazer de cada concerto uma noite especial, muito diferente da anterior. ‘Given to Fly’ continua a senda gloriosa.

Sempre dado a falar, Eddie Vedder elogia as outras bandas do cartaz, incluindo as Breeders, e assinala o concerto final da digressão, antes de cantar 'Elderly Woman Behind the Counter in a Small Town', balada que venera as raízes da americana e deixa bem à vista a poderosa voz de Eddie Vedder.

No tema ‘Why Go’, há um solo na guitarra elétrica de Mike McCready que faz uma vénia ao conterrâneo de Seattle, Jimi Hendrix, que brilha na camisola de Jeff Ament. O som inicial da guitarra, que parece o toque de um sino de igreja, dá o sinal para uma das canções mais adoradas dos Pearl Jam, 'Jeremy', no qual Eddie Vedder se empolga, saltando como se estivesse em cima de um mini-trampolim, segundos antes da apoteose da música.

Enquanto Eddie Vedder canta 'Wishlist' de guitarra elétrica à cintura, rolam nos ecrãs laterais saudações à comunidade surfista em Portugal, incluindo Tiago Pires (amigo do cantor), e a várias aniversariantes, através de uns papéis manuseados.

Para Eddie Vedder, os elogios não devem ser uma enumeração feita em série durante alguns segundos. Cada companheiro de banda merece um exclusivo naquele momento de palavras fortes. Foi o que fez ao baterista Matt Cameron, aclamando o seu trabalho “inacreditável” no último álbum “Dark Matters”, antes de se lançarem a um dos temas novos, ‘Waiting for Stevie’.

É verdade que Eddie Vedder fala às vezes demasiado e por vezes perde-se na comunicação - e não é por mal. Mas percebe-se logo a sua ironia quando diz que não se lembra do tema que vão tocar a seguir. Só podia ser um clássico. Era 'Even Flow', no qual Mike McCready fez-se estrela, tratando a guitarra elétrica novamente ao modo hendrixiano, encostando-a à nuca enquanto a dedilhava magistralmente.  

'Mind Your Manners' é Pearl Jam em punk puro, com a banda a mostrar a sua musculatura, tal como acontece também no tema seguinte 'Once', noutra tareia sonora. 

'Porch' expõe o que é que é ter uma das melhores duplas de guitarristas do rock. O que irá na cabeça de Vedder no alongamento instrumental daquele tema de 1991? “Que bandão tenho aqui comigo”. Eddie Vedder sauda-nos como um cavalheiro, tirando o chapéu, como quem só vai gozar uma pequena pausa.

No encore, o vocalista dos Pearl Jam fala nas eleições norte-americanas, antes de cantar a versão de ‘Imagine’, de John Lennon, que toca sozinho na guitarra acústica mas jamais só, acompanhado por milhares de vozes na arena e de luzes de telemóveis. Em Algés, Trump perdeu.

'Black' continua a ser um trabalho coletivo de dezenas de milhares de pessoas, todas a participarem para um momento épico. Em ‘Black’, o rock é um altar, não um ato lúdico. A escadaria para a transcendência sobe-se com a apoteose no horizonte. E quando ela ocorre, com o público a puxar pela última vogal, Eddie Vedder reaparece no palco, torna-se espectador e emociona-se ao ver a sua enorme multidão a cantar. 

De boné de pala para trás e casaco de cabedal, Eddie Vedder corre o palco no rock rude de 'Do the Evolution'. Na música mais cantada da noite, ‘Alive’, Eddie Vedder vai buscar uma pandeireta no momento instrumental. Mais 30 anos atrás, teria feito crowdsurf ou trepado uma estrutura do palco. 'Rockin' in the Free World' (de Neil Young) é uma celebração que os Pearl Jam têm pouca vontade de parar de tocar, como um dogma do grupo. Mais do que uma celebração, 'Rockin' in the Free World' é um encorajamento por um mundo melhor e uma crença. Contem com o rock como uma das últimas reservas da humanidade, onde coabitam Bruce Springsteen e Patti Smith e outras almas especiais. 

Eddie Vedder é tão bom para o mundo exterior, como para o colega de banda que está ao seu lado. O teclista ao vivo da banda, Boom Gaspar, também mereceu um exclusivo elogioso de Vedder, que assinalou os antepassados portugueses do músico havaiano, lembrando a forma como o conheceu há mais de vinte anos no icónico arquipélago do Pacífico. E depois de Eddie Vedder falar do período “assustador” do cancelamento de vários concertos desta digressão, os Pearl Jam tocaram 'Yellow Ledbetter' para fecho do concerto.

No final, Eddie Vedder sai com o seu caderno e uma garrafa de vinho, enrolado num cachecol de Portugal. 

O concerto dos Pearl Jam parou os vários palcos à volta. Antes desse apagão em quase todo o recinto, houve um espetáculo muito concorrido dos Khruangbin, com uma concentração enorme de gente, que o trio norte-americano soube manter até onde foi possível - até onde se controla a ansiedade por ver Pearl Jam. O magnetismo sónico dos Khruangbin deve-se à beleza máxima reduzida ao mínimo de recursos: uma bateria, um baixo e uma guitarra elétrica onde cabem mil mundos, tão viajante que ela é nas mãos de Mark Speer. 

As músicas são quase canções, quase instrumentais, de poucas palavras, algumas delas em castelhano. Há uma suavidade sensual, num flirt avançado entre a guitarra elétrica de Speer e o baixo de Laura Lee, antes do entrelaçamento carnal que se adivinha a qualquer momento. Os ecrãs laterais com imagens em câmara lenta da banda, contribuem para aquele ambiente especial, que se torna ainda mais invulgar com o cenário com três janelas do que parece ser um templo, com uma escadaria. Foi uma hora de atmosferas, mais do que de canções.