Reportagem: Estradas de Novembro - Ilha das Flores, Açores
São sete da manhã e sinto uma outra vida no aeroporto de Lisboa. Não é certamente a mesma que encontrei em Agosto e em Setembro. O aeroporto está vazio e os embarques outrora demorados, acontecem agora de raspão.
Sento-me no avião sem ninguém por perto e caio para o lado. Nunca fui dos primeiros voos da manhã.
Faço uma escala de duas horas na Terceira, saio para fumar um cigarro e sinto a humidade típica açoriana como quem dá as boas vindas. Aproveito para ler o resto que Theroux tem para dizer aos caminhantes em A Arte da Viagem.
São onze e meia - hora açoriana - e volto a entrar no avião. Desta vez mais pequeno e se no primeiro tinha pouca gente, desta só a tripulação e pouco mais. Nem uma hora demora a chegar às Flores.
Passados mais de dez anos, regresso ao Jardim dos Açores. A ilha é ventosa mas nem a sua reputação se faz sentir assim que aterro. Consigo um carro emprestado e sigo caminho de Santa Cruz até à Fazenda das Lajes. Aluguei uma pequena, pacata e sossegada casa com vista-mar e demoro a instalar-me. Apodera-se de mim um cansaço inexplicável que tento combater para aproveitar a tarde.
A M. chega mais tarde porque vem de outra ilha mas ainda a tempo de celebrar a meia-noite dos meus 31. Enquanto M. não chega, saio de casa em direcção à Fajãzinha e reencontro o restaurante onde num Verão longínquo jantei com o Sol a pôr-se às dez e meia da noite. Deixo-me ficar por lá a recordar a vida de então e reparo como o tempo corre. Vou buscar a M. ao aeroporto e seguimos directos até à Poça da Alagoinha, agora Poço Ribeira do Ferreiro. A beleza está lá toda e mergulhamos nela por uns momentos.
Regressamos às Lajes para ir ao supermercado. Os restaurantes da ilha estão quase todos fechados e assumimos a veia caseira para celebrar o aniversário. Entre copos, cigarros e desconversas, entro de pé direito nos 31.
O dia 13 de Novembro, associado ao dia do azar por se tratar de uma sexta-feira, carrega com ele toda a sorte possível. Apesar da instabilidade tipica dos Açores, caminhamos até à Aldeia da Cuada para reencontrar o Carlos Silva e a mulher - fundadores do grande projecto. A secretária diz-nos que o casal está velho e em descanso e que agora o projecto está na mão das filhas. Enquanto M. tira umas horas para dar uma volta pela aldeia, eu vou filmar as redondezas. Encontramo-nos no estacionamento para descobrir algum restaurante que nos dê almoço. Tarefa difícil. Vamos até à Fajã Grande e o Maresia está fechado. Subimos um pouco e reparamos que a Casa da Vigia fechou o ano passado.
Pouco satisfeitos e esganados de fome, regressamos a casa para os restos da véspera do aniversário.
O tempo está humido e o vento acelerado. As nuvens vão passando depressa por cima do que a vista alcança. Treinamos a arte da lentidão na viagem mas o que nos rodeia parece atrasado. Ninguém me consegue ligar nem eu consigo retribuir as mensagens calorosas de parabéns. Guardo o gesto e a intenção. Saímos para conhecer as lagoas mas o nevoeiro prega-nos uma partida. Fica para o dia seguinte.
Fazemos um trilho e cai-nos uma valente carga de água em cima. Pergunto a M. se prefere desistir e recebo como resposta:
- Desistir é um acto de solidão. Quando há mais que um, a estrada faz-se.
- E as estradas dos caminhantes solitários?
- Desistir está na mente e não nas pernas.
Prosseguimos até à cascata e deixamo-nos ficar, contentes por não ter parado. No regresso a M. recorda com clareza:
- Pena que as hortênsias não estejam em flor. No Verão isto é de outro mundo.
- Bem me recordo. Estive em Agosto há mais de dez anos e o contorno da flor dava outra vida à ilha.
- Sim, na altura em que tiveste um desgosto de amor....contaste-me...
- O que sabe uma pessoa sobre o amor antes dos 20 anos?
- Tudo o que alguma vez queiras imaginar.
M. cala-me e seguimos viagem até casa.
No regresso paramos no café Porto Velho, compramos o único queque deformado no balcão e uma vela para assinalar o dia.
Caímos esgotados numa canção de Chet Baker e acordamos de raspão à hora da M. apanhar o voo de regresso a casa. Deixo-a em Santa Cruz e vou até ao cais para apanhar o barco até ao Corvo.
Devido às condições adversas, dizem-me que só amanhã. Assim é.
Já sozinho, volto às filmagens e percorro as estradas de Novembro desta ilha deslumbrante. O vento vai trazendo chuva e Sol e da minha parte é saber esperar para o melhor ângulo. Deixo-me ficar pelas lagoas, escrevo na beira da estrada à espera que fiquem descobertas.
Conheço de surpresa o Nuno, dono da casa onde estou, que me mostra a avançada e monstruosa plantação de batata-doce à frente de casa. Diz que não regou uma única vez. Os Açores têm destas coisas.
Sabendo o que faço profissionalmente, o Nuno convida-me para ir ao Maresia conhecer o dono. Digo-lhe que tentei e vi-o encerrado.
- Tens de ligar.
Nuno faz a chamada e convence Jorge a abrir para um copo e para me mostrar o sistema de som. Jorge foi fotógrafo do Público e fotografou Sampaio e Soares. Ficamos na conversa longa.
Em casa, embriagado, escrevo lá fora por pouco tempo. O sino da igreja assinala a meia-hora a meio quilómetro, os cães ladram a quatrocentos metros e matam um porco a duzentos. Paro e descanso.
No dia seguinte sigo de barco até ao Corvo. Filmo o Caldeirão e questiono-me como é que a beleza aqui não tem fim. Os 500 habitantes da ilha não têm resposta para mim.
Espero o barco enquanto escrevo num restaurante. Fumo cigarros atrás de cigarros porque a espera entre versos está-me a custar.
- Isso um dia prega-lhe uma partida - afirma Nunes, o dono do espaço, enquanto acende o seu. A vida a acontecer com as suas certezas incoerentes.
O barco deixa-me inteiro de novo nas Flores e regresso a casa para descanso.
No dia de voltar paro no Faial para me reunir com um editor de uma revista de poesia, entregar-lhe os versos sem querer saber mais deles. Ligo à M. para lhe agradecer o tempo e o espaço.
Voltarei a casa, de novo com vontade de partir.