Ouça a M80, faça o download da App.
PARTILHAR

Viagem a França: de Astérix aos perfumes

Os campeões do mundo ameaçam voltar a levantar o grande troféu de ouro. Vai ser difícil travar aquela máquina.

Gonçalo Palma

Se é à grande e à francesa, é para levantarem a taça. A elegância gourmet do país também se sente no relvado retangular, ainda para mais agora coroados como os detentores do título mundial.

Tridente de luxo... para o tri
Didier Deschamps tem um Ferrari nas mãos e sabe como conduzi-lo, quando tem um tridente ofensivo à disposição, com Mbappé (dos Paris Saint-Germain), o Ballon d'Or de 2022 Benzema (o goleador-mor do Real Madrid) e Griezmann (do rival Atlético Madrid), com Giroud (do AC Milan) na reserva. Viciado a enfiar a bola nas redes, o médio ofensivo Nkunku (do RB Leipzig) é uma das armas fortes à disposição de Deschamps, com um meio-campo menos faustoso do que outras grandes equipas gaulesas do passado, mas onde já é peça fundamental Tchouaméni (do Real Madrid). Na defesa, é toda uma abundância de qualidade. Nem o lateral-direito do Bayern Pavard, nem os jovens centrais Badiashile (do Mónaco) e Saliba (do Arsenal), ou o lateral-esquerdo do Liverpool Mendy têm o lugar garantido no onze, tal a concorrência de peso. Se a França voltar a levantar a "douradinha", não estranhem.

 

Les Coqs parfum
Dantes, sempre que havia uma crise na seleção italiana, a imprensa desportiva italiana sugeria que se marcasse um amigável com França porque a Itália ganhava sempre e dava prestígio. Essa piada só durou até 1998 quando a França começou a vencer a sério. Entenda-se como mesmo a sério um título de campeões do mundo ganho em casa, que nem os compatriotas acreditavam quando a caminhada triunfante se iniciou. Zidane foi o maestro de uma orquestra que tinha como seguro de sucesso uma defesa de aço com um eixo central com Desailly e Blanc e um médio defensivo carismático como o capitão Didier Deschamps. Para a nota artistica, os passes teleguiados de Zidane tinham uma continuidade pintada por Robert Pires num dos flancos ou pelo inesquecível Henry junto à baliza. Em 2000, nova epopeia de futebol elegante terminou também com Deschamps a erguer um troféu e com Blanc a beijjar a careca do guarda-redes Barthez. O que se festejava era o título de bicampeões europeus, e logo diante dos rivais italianos, no Golo de Ouro de Trezeguet.

Antes, a França só perfumava com a sua classe as grandes competições, mesmo que pudesse ir longe. Exceto no Euro 84, quando o parisiense Parque dos Principes coroou um príncipe maior como rei: Platini, pois claro, que se tornava o herói do primeiro título de campeões europeus para as terras de Astérix, com 9 golos em cinco jogos e a ideia consensual de que era o melhor jogador do mundo naquela época. Formalmente, era centro-campista; na prática facturava como se fosse um ponta-de-lança. Dava e marcava golos e os seus livres diretos pareciam penaltis, tal a taxa de sucesso. Antes, dos tempos da televisão a preto e branco (para os poucos que a tinham), há uma histórica campanha no Mundial de 1958 na Suécia que levou a seleção gaulesa ao 3º lugar e o avançado Fontaine a bater o recorde, ainda hoje imbatível, de 13 golos numa só edição.

A nível clubístico, quando se trata de contar as competições europeias ganhas pelos franceses, o número é inferior aos portugueses. Uma Taça dos Campeões Europeus (que seria retirada) para o Olimpique de Marseille e uma Taça dos Vencedores das Taças para o Paris Saint-Germain. Muito pouco para o país que é visto como tendo uma das cinco melhores ligas da Europa.

Em Portugal, o Naval 1º de Maio, a começar pelo guardião Peiser, deu-se melhor com jogadores franceses do que os chamados três grandes que tiveram alguns flops. O ponta-de-lança Paille teve pólvora seca no FC Porto no início dos anos 90, enquanto o extremo Laurent Robert quase se tornou invisível no Benfica na década seguinte. O ponta-de-lança Pongolle conseguiu mostrar-se mais... mas apenas no preço elevado por que o Sporting teve que pagar: seis milhões e meio de euros, só com um golo para a troca.  

 

Toque francês fora da toca
Foi na boémia das ruas de Paris que cresceu e se afirmou uma das maiores divas do século XX, Édith Piaf. De aparência frágil e com um rosto pálido que constrastava com a escuridão à volta, Piaf foi um monumento vocal maior que a Torre Eiffel. Daquela fábrica de ícones que é França surgiu um dos maiores rebeldes, Serge Gainsbourg. Mais que a espiritualidade do amor, foi criador afrodisíaco que cantou destemidamente sobre a carnalidade do sexo. Bastaria 'Je t'aime... Moi Non Plus', cantado com a sex-symbol Brigitte Bardot ou a com a sua maior musa Jane Birkin. Mas a perversão e génio de Gainsbourg não podia caber só naquela canção. A Chanson deu outros nomes proeminentes, queridos ao público português, quando este ainda ouvia música francesa. Charles Aznavour, Léo Ferré e Georges Brassens foram outros nomes maiores desta forma cancioneira gaulesa.

Nos anos 90, a imprensa musical anglo-americana propagou a expressão de french touch para explicar o boom de eletrónica, de nomes como os Air, Saint-Germain ou os mascarados Daft Punk, cuja popularidade esticou nos recentes anos à escala do DJ compatriota David Guetta, que encabeça cartazes e palcos altíssimos, impróprios para quem sofre de vertigens. Mas esta produção eletrónica tem um antecedente: o megalómano Jean-Michel Jarre, conhecido pelos seus espetáculos grandiosos em locais emblemáticos.

No que concerne às tradições mais longínquas, bem antes de haver programações eletrónicas, o emblemático acordeão que se tornou postal turístico de Paris e que tanto acompanhou Piaf vem da tradição do bal-musette, como acompanhamento das gaitas-de-foles em tertúlias em cafés da região montanhosa de Auvergne, entre locais e imigrantes no século XIX. A música bretã tem também tradições celtas, tal como em Trás-Os-Montes, onde as gaitas-de-foles sobressaem e onde se usa a língua bretã. Grandes festanças, semelhantes às que ocorrem na Irlanda, decorrem de noite na Bretanha com muita comida, bebida e dança à mistura.

 

O país da palavra gourmet
A França é o país onde nasceram os restaurantes. Onde surgiu o conceito de sofisticação. E onde se criou a nouvelle cuisine, aquelas pequenas porções de comida artisticamente desenhadas no prato e caras ao bolso. As estrelas do Guia Michelin favoreceram esse conceito de alta cozinha.

Os hábitos da cozinha francesa tornaram-se os nossos sem darmos por isso. Quase qualquer português sabe fazer um Quiche Lorraine (aquela tarte apetrechada de pequenos cubos de toucinho), mesmo que de forma um pouco alterada face ao original da região de Lorena. Os suflês (esse milagre das claras em castelo) estão ao alcance de qualquer manual de cozinha. Para cozinhar uma lasanha ou um bacalhau com natas, já sabemos que o molho Béchamel (a que raramente chamamos de molho branco) faz parte do processo. Pegamos numa batedeira, e munidos de um pacote de natas e de açúcar, facilmente fazemos um chantilly para um bolo, para aperaltar uma taça de morangos... Ou mesmo para um crepe, outra invenção francesa com que estamos familiarizados - os franceses fazem ainda os galettes no caso de serem salgados. As baguetes encontram-se em qualquer supermercado. Vamos a um café e damos de caras na montra com os éclairs (com aquelas coberturas doces, muitas vezes de chocolate), com as chaussons de maçã ou com os mundialmente populares croissaints - com que os gauleses gostam de acompanhar o Café au Lait nos seus pequenos-almoços. São o único país europeu, além de nós, a comer caracóis - sobretudo na zona de Borgonha - mas com aquele toque fotogénico de sofisticação (sofisticação, a palavra mais incontornável num texto sobre comida francesa).

Tudo o que é francês é associado automaticamente a qualidade. Pensa-se num chá de topo, vem à cabeça o Mariage Frères. Quando desejamos uma mostarda a sério (e não aquelas adocicadas para meninos que cada vez dominam mais as tascas e os supermercados), é a mostarda de Dijon que chama a atenção na prateleira gourmet (esta palavra gourmet só poderia francesa). Se nos apetece um chocolate de qualidade acima da média, uma tablete de Valrhona pode ser a solução (o chocolate em pó desta marca é também ótima matéria prima para um mais do que recomendável chocolate quente).  

Mesmo num desabafo de um estadista francês perante a ingovernabilidade do país, vem ao de cima a diversidade da gastronomia francesa. "Não se pode unir um país com mais de 265 tipos de queijo", lamentava o carismático Presidente francês Charles de Gaulle. Na verdade, atualmente há mais de 500 tipos de queijo diferentes em França. O mais conhecido entre nós é o queijo Rochefort, conhecido pela sua massa azul. Chega-se a comer queijo à sobremesa, tal a popularidade em França, país também de boas manteigas. Os bons pastos dão também belas carnes, de todo o tipo - só podiam -, até mesmo de cavalo e burro, em casos excepcionais. Têm tantos pratos de pato e ganso como nós de bacalhau. Mas a amostra mais aclamada é o famoso Patê Foie Gras (a partir do fígado gordo do pato). Também abençoados de peixe de excelência, quer de mar quer de rio, a costa francesa abona ainda os pratos com óptimo marisco, especialmente as ostras e os mexilhões. Nem os fungos escapam às maravilhas da gastronomia francesa, tendo em conta a omnipresença de cogumelos, quer nos pratos principais, quer nas sopas, quer até nos molhos.

Já se sabe, os vinhos mais caros e preciosos das garrafeiras vêm de França, sobretudo de Bordéus e Borgonha. Mas é bom não esquecer que são também a nação-berço do champanhe - o Moët & Chandon está sempre na lista dos melhores. Quando se trata de digestivos, o conhaque tem a boa fama.

Há já um número razoável de casas em Portugal inspiradas no conceito francês: para os amantes de carne, há o La Brasserie de L’Entrecôte (no Chiado, em Lisboa); quem gostar de uma refeição em galettes e crepes, é só passar pela Creperia La Bombarde (na Foz, no Porto) ou pela Bécot (na rua Sebastião da Pedreira); querem conhecer verdadeiros éclairs, é só deliciarem-se na patisserie L' Éclair (nas Avenidas Novas, em Lisboa).


Viver à grande é à francesa
Sem nos darmos conta, vivemos à francesa, mesmo que não à grande. Mal saimos à rua, o que vemos são carros da Renault, da Peugeot, ou da Citroën, todos eles melhores na elegância do que na chapa - quem não se lembra de míticos como a Renault 4L ou do Citröen 2CV? Olhamos para os pneus de muitos dos automóveis e vemos a marca Michelin... Mesmo se mudarmos de transporte, o tricolor gaulês persegue-nos. Vamos para a pista de aeroporto e vemos toda uma frota de aviões Airbus. Idealizamos um comboio de velocidade e só pensamos no TGV... É melhor mesmo ficarmos em casa mas nem no nosso lar a França nos larga. Vamos ao frigorífico e vemos iogurtes da Danone e queijo de barrar da Président. Abrimos a porta do congelador e damos de caras com gelados da Olá. Vamos às prateleiras da cozinha, e, caso sejamos preguiçosos na arte da doçaria, lá vemos embalagens de sobremesa da Alsa - mousses, pudim ou gelatinas. Se quisermos livrarmo-nos da Alsa e de produtos pré-feitos afins, é melhor pormos mãos à obra, nem que seja com utensílios elétricos - alô, Moulinex! Nem no armário dos produtos de limpeza as marcas gaulesas escapam, quando agachamo-nos e vemos embalagens da Cif ou da Omo. Há até um pouco de França no nosso corpo, sejam em desodorizantes (Axe), ou em produtos cosméticos (Chanel, Dior, L'Oréal, Lancôme, Sephora). Ou sobre a nossa pele, através de marcas de roupa como a Lacoste - com o seu famoso crocodilo no logo. Se formos mais finos (e endinheirados), há a alta costura da Saint Laurent ou as malas de luxo da Louis Vuitton. O que fazer? Queremos comprar material de casa, temos que ir ao Leroy Merlin. Precisamos de fazer as compras da semana, corremos o risco de ir parar aos hipermercados do E.Leclerc ou do Intermarché. Queremos comprar um livro ou um disco ou um produto tecnológico, lá acabamos numa loja FNAC. Tenta-se pensar numa alternativa a este predomínio francês, mas quando se olha abaixo do monitor, lá estão duas canetas esferográficas Bic ao lado de umas folhas. Incontornável, rendição à indústria gaulesa!

Rendição só à indústria? Na nossa formação escolar, estuda-se fisico-química e eis que nos aparece Lavoisier. Folheia-se os manuais de história e lá estão muitas páginas dedicadas à Revolução Francesa (1789) e às Invasões Napoleónicas. E quem teve filosofia no liceu, teve que estudar a fundo Descartes. Mesmo na nossa meninice, quando queriamos aprender alguma coisa na TV, algum francês tinha sempre alguma coisa para nos dizer, como Albert Barillé, naquelas séries Era uma Vez… (Era uma Vez o Corpo Humano, Era uma Vez o Espaço, Era Uma Vez... o Planeta Terra). A BD francesa também se cruzou connosco, sobretudo o Astérix e os seus bravos aldeões. Muita da ficção que invadiu as nossas infâncias tem como ponto de partida as obras de Júlio Verne ou de Alexandre Dumas (sobretudo os homens de espada "Os Três Mosqueteiros", adaptados à famosa série de animação "Dartacão e os Três Moscãoteiros").

Há uma imensa França nas livrarias e nas lojas de alfarrabistas - de Proust a Camus, da poesia de Rimbaud à de Cocteau. Na programação da Cinemateca - dos primeiros filmes de sempre dos irmãos Lumiére, ao réalisme poétique de Jean Vigo e de Jean Renoir e à Nouvelle Vague de Jean-Luc Godard e François Truffaut - e até nas folhas da Cinemateca, inspiradas nos artigos dos Cahiers du Cinéma. No teatro - como as peças de Mouliére tão encenadas por cá. Ou no bailado – ou melhor, ballet, uma invenção francesa.