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Gonçalo Palma
21 maio 2018, 02:53
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Roger Waters no teatro de guerra connosco

Roger Waters no teatro de guerra connosco
LUSA
Gonçalo Palma
21 maio 2018, 02:53
Espetáculo na Altice Arena, repleto de críticas ao sistema político, foi também um tributo aos Pink Floyd.

Correu bem a primeira das duas noites do espetáculo de Roger Waters na Altice Arena, em Lisboa. Pelo grande ecrã em palco, percebíamos que íamos ter cinema. Pouco passava da hora combinada quando Roger Waters entrava em palco, no seu habitual e informal guarda-roupa - calças e t-shirt pretas -, com a sua barba por fazer e o seu cabelo desgrenhado. A acompanhá-lo, estiveram em permanência mais oito músicos.

A música de entrada Breathe dava logo a indicação do predomínio do reportório dos Pink Floyd no espectáculo. Esse mergulho no planeta sonoro à parte dos Pink Floyd é ainda mais profundo no tema seguinte, One of These Days, um instrumental de prog-rock cósmico a estimular um movimento mecanizado de passos de robot às duas mulheres dos coros, enquanto que o andamento do baixo de Roger Waters se ouvia bem alto. O batimento seguinte é o do relógio, com imagens redondas do objeto a anunciar Time, tema tão grandioso quanto os próprios Pink Floyd. Roger Waters é o líder criativo do espetáculo mas não necessariamente o líder vocal. Deixa os outros cantar, enquanto toca o seu baixo. Em Time, o guitarrista Jonathan Wilson cumpre a sua missão vocal de David Gilmour (o outro homem forte dos Pink Floyd, depois do alheamento cerebral de Syd Barrett, a contas com trips de ácidos de ida sem volta), sempre com dois elementos que não podem falhar na música da antiga banda: os solos de guitarra de mitificação automática e os coros femininos. É sobre as duas mulheres de cabelos postiços loiros que incidem por várias vezes as luzes da ribalta, enquanto Roger Waters se recolhe numa das extremidades do palco.

A grande tela estrelada reincide como se estivéssemos no meio do campo, longe das luzes urbanas, a deleitarmo-nos com o céu prístino. Depois, um videoclipe animado de Welcome to the Machine ilustra o que Waters quer cantar, numa sinfonia épica sem secções cordas, com gritos de multidão gravados que se confundem com o do próprio público na grande sala lisboeta.

Mas Roger Waters não está propriamente em estado de coma nostálgico. O músico inglês mostra um trio de canções do seu álbum a solo mais recente "Is This the Life We Really Want?" que denuncia que está criativamente ativo. E atento. As baladas acústicas acentuam-lhe ainda mais a sua faceta de intervenção, como Déjà Vu e The Last Refugee, esta última cantada e ouvida como se fosse um discurso político, que merece uma enorme ovação. Já Picture That tem o som grandiloquente dos Pink Floyd mas com o olho observador de Roger Waters sobre este injusto mundo. De forma satírica, o baixista ergue os braços no ar vezes sem conta para enfatizar o que canta.

Wish You Here tem alguns dos acordes de guitarra acústica mais famosos da história do rock, com uma letra que o público português continua a saber cantar de cor. Another Brick in the Wall é encenado em palco com 12 pré-adolescentes portugueses, interpretado como se a repressão continuasse uma praga mundial (e continua) mas vivido pelo público dançante da Altice Arena como entretenimento (e era).

O intervalo de vinte minutos foi preenchido com recados nos ecrãs para Mark Zuckerberg (líder do Facebook), Gina Haspel da CIA, e outras frases de ordem - ou desordem. O sistema sonoro surround da sala simulava-nos a presença em zona de guerra, como se estivéssemos na Síria ou na Faixa de Gaza, com sons recorrentes de walkie-talkies e outras comunicações telefónicas, e o ruído de sirenes policiais, de helicópteros e de bombas. O clima bélico acentua-se com o início da segunda parte, com a projeção na zona central sobre a plateia de uma grande fábrica com quatro chaminés fumegantes. As atenções deixam de estar sobre o palco, apesar de Rogers e respetivos músicos estarem já a tocar. É interpretado Dogs, com uma matilha a ladrar, enquanto um homem mascarado de ovelha serve o champanhe aos mascarados de porcos. Depois, Roger Waters exibe os seguintes cartazes: "Pigs rule the world" e "fuck the pigs". O momento está propício para uma projeção contínua de frases panfletárias que faz lembrar a Zoo TV Tour dos U2 no início dos anos 90. Em Pigs, essas frases passam a citações das numerosas declarações polémicas do Presidente americano Donald Trump, o visado e caracterizado nas imagens. As alusões metafóricas ao porco dão a vez ao mais objectivo: "o Trump é um Porco", em bom português, nas várias telas sobre a plateia.   

Os sons de caixas registadoras em Money apagam-se para um solo de saxofone de Ian Richie. Em Brain Damage e em Eclipse, irradia sobre a plateia o efeito luminoso da pirâmide que faz a capa de "Dark Side of the Moon". Roger Waters agradece comovido o grande aplauso com a mão no coração e com um "obrigado" antes de apresentar a banda. Depois do tema a solo Wait for Her, Roger Waters despede-se com um dos temas mais carismáticos dos Pink Floyd, Comfortably Numb, espécie de space-rock de estádio abraçado por uma soul etérea, algo que só a antiga banda de Waters conseguia fazer. Depois de duas horas e quarenta minuto de atuação, Roger Waters faz uma longa despedida. Parecia que já queria ficar em palco para o concerto desta segunda-feira. No domingo, todos saíram satisfeitos.