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Gonçalo Palma
12 dezembro 2018, 12:20
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Pedro Abrunhosa: "a Carla Bruni queria cantar em português"

Pedro Abrunhosa: "a Carla Bruni queria cantar em português"
Gonçalo Palma
12 dezembro 2018, 12:20
Entrevista ao músico, a propósito do seu novo álbum "Espiritual", repleto de convidados, alguns deles internacionais.

 

Pedro Abrunhosa, hoje com 58 anos, lançou há menos de duas semanas o seu oitavo álbum, "Espiritual", marcado pela lista luxuosa de convidados. Só como cantores estiveram envolvidos nada mais, nada menos que Carla Bruni, Lucinda Williams, Lila Downs, Ney Matogrosso, Ana Moura ou a mais jovem Elisa Rodrigues. "Quando ouvimos um cantor, imediatamente reconhecemos um timbre. O do Tom Waits é um, o do Thom Yorke é outro. A da Ana Moura é um, a da Lila Downs é outro. E as canções começam a pedir esse timbre. Se quiseres, é uma coisa aspiracional. 'Olha, aqui ficava muito bem a Carla Bruni!'. 'Então, vamos tentar'. 'Aqui vamos tentar a Lucinda Williams', que é dos duetos que eu mais gostei de levar ao disco. 'Aqui ficava bem a Ana Moura'. São coisas aspiracionais que felizmente se concretizam", enquadra-nos Pedro Abrunhosa, em entrevista telefónica à nossa rádio.

 

Este é o álbum mais internacional e mais multilingue de Pedro Abrunhosa. Ouve-se português de vários sotaques, ou as línguas francesa, espanhola e inglesa. A música parece, por si só, o remédio santo para congregar várias línguas numa só canção, que dispensa tradutor. Mas Pedro Abrunhosa, ao recrutar vários cantores, teve outra preocupação. "A intenção é mesmo uma questão tímbrica. Quando faço uma canção onde entra a Carla Bruni, ela queria cantar em português, e ficaria muito giro, mas canta melhor em francês. Quando chega o dueto da Lucinda Williams, a minha vontade é a de não meter a minha voz. Estava tão bonito, tão bonito, cantado do princípio ao fim. É para satisfação pessoal do compositor ter estas parcerias". 

 

Espiritual tem uma canção de assumida atmosfera country, 'Se Tens de Partir Não Me Contes', onde brilha com esplendor Lucinda Williams. A música de Abrunhosa acercava-se do country há já alguns anos, há algum tempo que andava lá por perto. Mais que a concordância com esta impressão, mais que uma resposta, Abrunhosa dá-nos a bênção de uma aula: "há um country que me interessa muito pouco que é o country do camionista que está para a música americana como o pimba está para a música portuguesa. Mas há um country dado pelo Woody Guthrie, pelo Bob Dylan, pelo Johnny Cash que é poético e que canta outros assuntos, como a profundidade das coisas. Não canta o alcatrão, canta o pó. No country ou no rock, a raíz é comum que é a grande música negra. Só que o country cruza a música negra, a música dos escravos, o espiritual, daí o título do disco, e os blues com a música irlandesa. Nós em Portugal não andamos muito longe desta realidade. A raíz da música irlandesa é a nossa, que é o cruzamento da música celta com o trovador do sul da Europa que nos dá escritores de canções portugueses, algumas mais-valias que são a canção provençal [do sul de França], espanhola, italiana e portuguesa, que dá uma outra harmonia e uma outra textura, mas não deixa de ser canção". O velho fã de Prince e de James Brown, que já teve o privilégio de ter tido como colaborador no seu álbum de estreia "Viagens" o saxofonista Maceo Parker faz a devida auto-avaliação: "A música negra que eu faço com o funk não anda muito longe do country", por isso este dueto com Lucinda Williams "é apenas mais um passo pequenino"

 

Já é uma tradição na discografia de Abrunhosa os álbuns terem uma só palavra no título. Curiosamente, "Viagens", "Tempo", "Silêncio", "Momento", "Luz", "Longe", "Contramão" ou, agora, "Espiritual" são todas palavras associáveis. "As palavras significam essa coisa ampla de espelhos interiores, que representam uma coisa diferente mas que simultaneamente unem este discurso. Se os meus discos têm letras tão compridas, de tal forma que não as sei de cor, então eu vou tentar sintetizar numa palavra o título do disco".

 

Pedro Abrunhosa gosta de valorizar as letras das suas canções com a grandeza da poesia: "No meu universo, são indissociáveis. Tento que. São indissociáveis no universo do Fausto, numa canção como Porque Me Olhas Assim, com uma belíssima poesia. O fado na voz da Amália, a partir do [compositor] Alain Oulman, naquele disco Com Que Voz, é seminal para a cultura portuguesa. As poesias são do Alexandre O’Neill, do Ary [dos Santos], do Camões. Um Homem na Cidade dos Carlos do Carmo, uma vez mais"

 

E será que as pessoas dão a devida atenção às letras? "A espiritualidade, esta conexão com o transcendente, é uma característica do homem. A humanidade precisa disso. E do que tenho visto através das minhas canções - porque já ando nesta vida há algum tempo e nós estamos permanentemente em digressão -, os nossos concertos são por excelência grandes congregações de multidões, estamos a falar de locais inóspitos com 20 mil, 30 mil pessoas. As pessoas não vão lá porque sou bonito, porque não sou; não vão lá porque sou cabeludo, porque sou careca; não vão lá por causa da minha bonita condição atlética; não vão lá porque faço pop superficial. Vão lá porque porque sabem que o espetáculo é de três horas, alicerçado num reportório já bastante complexo e completo. E vão lá porque precisam deste exorcismo da palavra". Na sua sustentação da resposta, Abrunhosa vai mesmo até ao debutante ano de 1994, quando rompeu o anonimato com inédito aparato. “Ainda bem que no Viagens escrevi canções fortes porque agora permite-me continuar a cantá-las. Essa substância foi passando de geração em geração. As canções ficaram no património. Tenho 58 anos, quando chego ao pop stardom já não era novo tinha 33, não tinha nem 16, nem 17, nem 18. Se cheguei e fiquei, foi pela consistência das letras”.   

 

Durante a Guerra Fria, havia o Muro de Berlim, que o viajante vintão e anónimo Pedro Abrunhosa atravessou várias vezes. Mas hoje há mais muros do que antes. Não é uma opinião ou uma impressão de Pedro Abrunhosa, o cantor recorre aos dados estatísticos das Nações Unidas. "Havia depois da II Guerra Mundial 14 muros, agora há trezentos e tal, se não houver mais. Eu estive em Berlim ocidental e oriental antes da queda do Muro, atravessei de lá para cá muitas vezes. Estive no Bloco de Leste durante muito tempo porque vivi na Hungria, portanto já soube o que era um muro. A travessia da Roménia para a Hungria era naquela altura muito complicada, muito ameaçadora e até perigosa. Esta questão dos muros é uma questão que já existe há muito tempo. Mas agora há mais. Esta vaga migratória só tem comparação com o pós-II Guerra Mundial. Ninguém viaja (no sentido de andar três mil quilómetros) ou atravessa um oceano com duas crianças ao colo por prazer. As pessoas vão por necessidade, porque esgotaram os recursos e têm fome. Eu não acho: os dados da ONU são claros, há mais muros agora. É por isso que é preciso que haja agora mais amor e, se calhar, mais arte”. Pedro Abrunhosa dá o exemplo, encurtando o oceano Atlântico ao tamanho de um pequeno lago transponível, para cantar com a mexicana Lila Downs o dueto em 'Amor Em Tempo de Muros', enquanto outros como Donald Trump agigantam fronteiras fazendo do vizinho México um planeta de um outro sistema solar com seres indesejados, bem longe da Casa Branca.   

 

Portugal é um país de maioria de esquerda, um dos países mais à esquerda da Europa. Estaremos a salvo da extrema direita e desta vaga de populismo? Pedro Abrunhosa acredita na inteligência dos portugueses, mas vai lançando avisos: "Porque é que são eleitos políticos que prometem o mundo e sabem que não o vão poder dar? Porque cavalgam no descontentamento das pessoas e num grande fosso, porque as pessoas estão pobres e não têm acesso à saúde e à educação e à justiça. Quanto mais cavarmos essa distância, mais fácil é vir um populista e dizer que consegue a solução. E a solução é matarmos os judeus todos, foi o que fez o Hitler". 

 

A vaga turística que tem revolucionado Lisboa, tem também agitado o Porto de Pedro Abrunhosa. Apesar de alertado para alguns efeitos nefastos do neoliberalismo nesta área que mexe com as sensibilidades dos moradores, o músico acho que "o Porto, agora, está muito melhor que há dez anos, quando as casas estavam a cair e sentia-se uma certa angústia urbana naquela cidade. Haja bom senso de lado a lado, entre a oferta e a procura, para que as cidades de Porto e Lisboa não percam a sua identidade”.